Nada do (pouco) que já li sobre o Romantismo, a construção da identidade nacional ou José de Alencar me preparou para ler "O Sertanejo". "Descoberta" ou insulto à inteligência?
Não me refiro aos superpoderes do sertanejo. Coisas muito mais espantosas a gente lê nos jornalões e vê nos telejornais todos os dias e já nem se dá conta; é até preciso esforço para lembrar que as tropas americanas não são o eixo do bem lutando contra o eixo do mal. E se o autor de "O Sertanejo" não fosse o ministro empolado de Pedro II (nem acrescentasse tantos elogios sobrenaturais às qualidades do personagem), até pareceria moderno, não muito distante do índio de Caetano Veloso, ou do selvagem de Lévi-Strauss, para o qual a mata é como as gôndolas de um rico supermercado. Há muito realismo na percepção de que o sertanejo não é o bocó imaginado por algum urbanóide criado entre a TV e o shopping. E que fica sabendo de muitas coisas, como se dizia no Acre, através da "Rádio Cipó".
Me refiro, por exemplo, ao lusitanismo quase absoluto do sangue dos personagens. Com exceção das tribos chamadas para dar uma mãozinha na hora H, e um único (que me lembre) dos peões da fazenda "do bem", todos têm sangue lusitano, praticamente puro. O próprio sertanejo, dotado de superpoderes indígenas, parece não ter mácula étnica. Entre os peões, há até mesmo um que (se entendi direito) veio diretamente de Portugal. Os da casa grande têm até parentes próximos em Portugal; andaram ou esperam andar por lá em algum momento da vida, mas isso é plenamente digerível, quando se lembra que ainda nos primeiros anos da República a população urbana (de média para baixo) ainda se ressentia de um monopólio do comércio (e dos empregos no comércio) por parte dos lusos. Na década de 1870, André Rebouças fez as contas do volume de capitais que provavelmente se escoavam da praça do Rio de Janeiro para Portugal, todos os anos.
Mas indicações de qualquer outro "sangue", que não europeu, parecem só existir quando se trata dos mal encarados que servem ao clã adversário -- seriam fazendas "do mal", na linguagem presidencial dos EUA do século XXI.
O resto das coisas surpreendentes (para mim, claro!), deixo provisoriamente na conta de o romancista escrever "de orelha", por assim dizer. Além de muita leitura e pesquisa (em fontes que hoje não são corriqueiras), o autor pode ou deve ter bebido muito da conversa dos mais velhos.
O romancista nasceu em 1829 -- o Brasil "independente" tinha 7 anos, segundo a história construída pelo imperial IHG(B); ou estava para nascer dali a dois anos, na visão de muitos contemporâneos do 7 de Abril, quando finalmente pensaram ter se livrarado de Pedro I. Foi levado para o Rio, quando a família se mudou, em 1838, já em pleno "Regresso".
Os acontecimentos do romance, no entanto, são datados de 10 de Dezembro de 1764 a 5 de Janeiro de 1765 -- portanto 65 anos antes do nascimento do autor, ou 85 anos antes dele chegar aos 21. Embora a expectativa de vida no Primeiro Reinado não fosse lá uma Brastemp, nada impede (por princípio) que avós e tios avós do romancista, pertencentes à elite da época, vivessem o bastante para contar a ele muitas maravilhas, com os douramentos da pílula a que tinham direito. Se algum deles(as) se mudou com a família para o Rio de Janeiro (para poder contar mais, enquanto ele crescia), ou se / quantas vezes ele voltou ao Ceará para ouvir mais, sinceramente ainda não sei (nunca li a biografia de José Martiniano de Alencar). Mais provável é que ouvisse, de segunda mão, o que seus pais tivessem ouvido ainda no Ceará.
Em 1764-1765, me parece que boa parte do planeta lusitano (ou do que restava dele) já se tinha estabelecido em terras atualmente brasileiras -- em especial, na faixa que vai de Parati, Rio de Janeiro e Salvador, até a região de Cuiabá e além, passando pelas "Minas Gerais" (Vila Rica, Congonhas, Sabará etc.), Sul ("oeste") de Minas, Goiás velho (Pirenópolis, Corumbá); e (se não confundo as datas) pelas "Diamantinas" (de Minas, da Bahia, do Mato Grosso), embora nestas em menor número, devido às restrições de entrada / saída.
Nessa corrida do ouro, despovoou-se não apenas o (que restava do) planeta lusitano, como boa parte do próprio Brasil atual -- que por mais de um século já vinha sendo despovoado (de índios) pelos bandeiristas.
O romance de José de Alencar descreve ouro e prata abundantes, tanto no serviço de mesa quanto nos atavios dos cavalos e cavaleiros top de linha -- mas não encontrei referência (sequer indireta, ou inferível) a qualquer despovoamento / migração para as Minas. Quase como se nada estivesse acontecendo. O mundo, exceto pelo que diz respeito a Portugal, não existia. Somente o Ceará, e sua órbita referida ao Pernambuco -- o Recife das cavalhadas e do mancebo malcriado, e o interior, de onde provinha sua linha auxiliar de fazendas e peões mal encarados.
O mundo em polvorosa com o ouro jorrando das Minas para a gestante revolução industrial inglesa, e o cenário é de pastoril medievalidade. Sequer uma inquietação, num lago plácido como um espelho.
Ausência absoluta, também, de qualquer reflexo dos jesuítas -- missões, aldeamentos, catequese, conflito. Ok, o Ceará não se distinguiu como centro de atividade econômica jesuíta. Mas se até então não houvessem "catequizado" índios em grande número, dali por diante já não teriam prazo para fazê-lo. E a "administração" que os substituiu jamais teve competência para isso, limitou-se a explorar (e desmantelar) os aldeamentos que encontrou. Em qual momento, então, se povoou o Ceará? Com certeza, não depois -- e não com a parca população lusitana, que aliás teria destinos (se é que já não tinham tido, àquela altura) muito mais dourados. E no entanto, apenas 100 anos depois do momento retratado no romance -- um sertão despovoado --, o Ceará estaria botando gente pelo ladrão. Na seca de 1877 alimentou o povoamento do Acre.
São mais perguntas (e inconsistências) do que respostas. Tudo isso não passa de uma anotação para observar melhor futuras leituras.
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