Símbolo da luta camponesa pela distribuição de terra no Brasil, a história da guerrilha de Porecatu, no Paraná, é resgatada no livro "Porecatu: a guerrilha que os comunistas esqueceram", do jornalista Marcelo Oikawa.
Além de influenciar a criação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais, a guerrilha “motivou a assinatura do primeiro decreto de desapropriação de terras para fins sociais”.
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Após 20 anos de pesquisa, o jornalista explica como ocorreu a guerrilha de Porecatu e como se deu a relação entre posseiros de Porecatu e o Partido Comunista Brasileiro – PCB. Segundo ele, como estava na ilegalidade, o PCB tentou alcançar o poder “partindo do campo para as cidades”.
Esta decisão, menciona, veio a “calhar com as necessidades dos posseiros de Porecatu que vinham resistindo como podiam contra os grileiros, jagunços e a polícia, desde 1944. Em 1948, a convite dos próprios posseiros, o PCB entra na luta para liderá-la, imaginando que ela seria ‘a fagulha que iria incendiar o campo’, como diziam os dirigentes comunistas da época”.
Das 3 mil famílias que lutaram pela distribuição da terra, apenas 380 foram assentadas. Dos participantes da “chamada aliança operário-camponesa em Porecatu, apenas Manoel Jacinto era operário. Os demais comunistas, além dos trabalhadores rurais, eram ex-militares, médicos, advogados, engenheiros, professores, comerciantes etc.” conta ele, em entrevista à IHU On-Line por e-mail.
Apesar de ter lutado ao lado dos camponeses na década de 1950, integrantes do PCB e das dissidências PCdoB e PCBR evitam comentar o tema. Para o jornalista, o silêncio justifica-se porque “boa parte do PCB considerou Porecatu um dos maiores erros de sua história. Uma outra parte simplesmente silenciou (...). Terminado o conflito, as autoridades disseminaram pela imprensa que Porecatu não tinha tido importância, que havia sido algo espontâneo, errático, pequeno. Também muito curiosamente, setores da esquerda assumiram essa postura”.
Marcelo Oikawa é jornalista, paulista, foi repórter dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, atuou na região norte do Paraná e foi correspondente de diversos outros veículos de comunicação.
Confira a entrevista.
De onde vem seu interesse em pesquisar a guerrilha de Porecatu?
Sempre ouvia falar da guerrilha de Porecatu, mas ninguém sabia dizer muita coisa, senão que havia sido sangrenta. Como jornalista na região, sempre que visitava Porecatu e tocava no assunto, sentia que as pessoas evitavam o assunto com muito medo. Também há o fato de que minha família era próxima da família de Manoel Jacinto Correia, um comunista que foi um dos líderes daquela resistência. Ele passou a vida criticando e lamentando que a direção do Partido Comunista tivesse impedido a negociação oferecida pelo governo do Paraná, após anos de lutas, apesar da vontade dos posseiros. Manoel considerou um grave erro a recusa em negociar.
Por que Porecatu é um exemplo típico de como se formou a propriedade da terra no Brasil?
O Brasil colônia foi ocupado por capitanias hereditárias e sesmarias sempre tratadas com muito desinteresse por seus donatários. Com a Proclamação da República, requerimentos de posse deram entrada em cartórios por todo o território nacional sem nenhuma comprovação. Em muitos casos esses requerimentos se sobrepuseram a outros dando origem a disputas. É o caso de Porecatu, com a agravante de que o próprio governo estadual chamou os posseiros para ocuparem a região e depois os considerou intrusos.
O senhor afirma que Porecatu foi a primeira Liga Camponesa do Brasil. É isso mesmo? Não foi no Nordeste que elas se originaram? Qual a origem desse nome?
Sempre se achou que a primeira Liga Camponesa do Brasil foi a Dumont, de Ribeirão Preto, criada em 1945. Mas Porecatu a precedeu, fundando as duas primeiras associações de lavradores do país. O conflito em Porecatu registrou a criação de mais de uma dezena dessas associações, já com o nome Liga Camponesa. Foram precursoras das famosas Ligas de Francisco Julião, no Nordeste.
Qual a importância de Porecatu na luta camponesa brasileira?
É a primeira luta camponesa brasileira sem o componente religioso ou messiânico como Canudos e Contestado. É o evento inaugural que vai influenciar dezenas de lutas que ocorreram no Brasil a partir de Porecatu, inclusive com a criação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais. Porecatu motivou a assinatura do primeiro decreto de desapropriação de terras para fins sociais. Também foi lá que se usou pela primeira vez a palavra camponês para designar o trabalhador rural sem terra, colono, arrendatário ou pequeno proprietário.
Por que o PCB decidiu se envolver nos conflitos camponeses e deslocar quadros para apoiar a luta dos posseiros?
Com o início da Guerra Fria, os partidos considerados comunistas foram colocados na ilegalidade. Com isto, no Brasil, os comunistas mudaram sua estratégia e tática, passando a considerar a via revolucionária para o poder, partindo do campo para as cidades. Esta decisão vem a calhar com as necessidades dos posseiros de Porecatu que vinham resistindo como podiam contra os grileiros, os jagunços e a polícia, desde 1944. Em 1948, a convite dos próprios posseiros o PCB entra na luta para liderá-la, imaginando que ela seria “a fagulha que iria incendiar o campo”, como diziam os dirigentes comunistas da época.
Os trabalhadores receberam bem e aceitaram a liderança do PCB? Como se deu a luta? Houve enfrentamentos, muitos morreram?
O PCB foi para os trabalhadores uma esperança de conquistarem finalmente os títulos de propriedade. Os conflitos, com táticas de guerrilha, se estenderam até junho de 1951, período em que os combatentes chegaram a controlar uma área de 40 quilômetros quadrados. Para se ter uma ideia da violência que imperava na região, em 1953 dois jornalistas da revista O Cruzeiro realizaram um levantamento nos cemitérios da região e descobriram que metade das covas eram ocupada por corpos de pessoas assassinadas.
A aliança operário-camponesa sugerida pelo PCB deu certo na luta em Porecatu?
Por responsabilidade do próprio PCB, a luta de Porecatu acabou fracassando. De mais de 3 mil famílias lutando pelos títulos, apenas 380 foram assentadas. E nessa chamada aliança operário-camponesa em Porecatu, apenas Manoel Jacinto era operário. Os demais comunistas, além dos trabalhadores rurais, eram ex-militares, médicos, advogados, engenheiros, professores, comerciantes etc.
O que mais lhe impressionou na pesquisa dos arquivos do DOPS e na leitura do diário de Hilário Gonçalves Pinha, um dos comandantes militares da luta armada?
Na pesquisa do DOPS, constatei que, nos 70 anos de funcionamento desse organismo policial no Paraná, Porecatu deu origem à maior quantidade de documentos policiais, mais do que o movimento dos estivadores no Porto de Paranaguá e o movimento dos ferroviários do estado. E no diário de Hilário, o que impressiona é sentir o calor dos acontecimentos e a sua descrição do confronto que causou o maior número de baixas entre posseiros, jagunços e polícia.
Quais foram as conquistas e as derrotas em Porecatu?
Marcelo Oikawa – Em minha opinião, as grandes lições de Porecatu são a descoberta pelos camponeses do valor da união, do trabalho em mutirão, da importância da organização. A experiência de Porecatu vai influenciar as lutas camponesas que ocorreram em vários pontos do país e do Paraná a partir da década de 1950. E a derrota ensinou, tarde demais, que é preciso ter amplitude na tática de luta, saber avançar e saber recuar, saber exigir e saber negociar.
Como os jornais da época abordavam os conflitos em Porecatu?
Marcelo Oikawa – Os jornais comunistas – haviam vários, praticamente um em cada um dos estados mais importantes – apoiavam, faziam campanhas de arrecadação de fundos e donativos. A grande imprensa da época cobria o conflito com grande alarde, mas é possível notar que agiam de acordo com seus próprios posicionamentos partidários. Na imprensa do Paraná, esse viés era escancarado. O interessante é que na maior parte do tempo esses jornais culpam seus adversários políticos pela situação em Porecatu. Somente anos mais tarde começam a chamar a atenção para a ação comunista.
Por que, em sua avaliação, dirigentes do PCB da época pouco tocavam no assunto da guerrilha de Porecatu e por quais razões, mais tarde, homens que se dividiram entre PCB, PCdoB e PCBR não falaram sobre o tema?
Essa é uma pergunta que está até hoje sem resposta. Por que se calaram? Uma boa parte do PCB considerou Porecatu um dos maiores erros de sua história. Uma outra parte simplesmente silenciou. É curioso notar que em 1954, em Trombos e Formoso, Goiás, o próprio PCB vai propor um acordo ao governo do Estado para solucionar os conflitos pela terra. Os dirigentes do PCB eram os mesmos. Talvez falar de Porecatu implicasse em admitir um erro importante.
Por que o senhor afirma que o PCB deliberadamente “esqueceu” de Porecatu? E, no mesmo sentido, por que a história de resistência dos posseiros em Porecatu é desconhecida para a maioria das pessoas?
Terminado o conflito, as autoridades disseminaram pela imprensa que Porecatu não tinha tido importância, que havia sido algo espontâneo, errático, pequeno. Também muito curiosamente, setores da esquerda assumiram essa postura. Por medo, a região sepultou a história em sua memória. Os únicos registros que restaram são as ações judiciais que estão depositadas sem grandes cuidados no Fórum de Porecatu e nos arquivos do DOPS, bem como com alguns familiares de comunistas que viveram a época.
Na avaliação do senhor, o que o MST herdou das ligas camponesas?
Não tenho conhecimentos suficientes para fazer uma comparação entre o MST e a luta camponesa da época. O que eu posso fazer é relatar uma experiência que vivi recentemente: ao finalizar o livro, decidi viajar à região para procurar os cenários da guerrilha.
Tive como guia dois líderes do MST na região. Além de encontrar o que procurava, encontrei também o que não procurava: várias fazendas que, na época, tiveram greves de trabalhadores e que ainda continuam lá, com o mesmo nome. Reinvidicavam, por meio de greves, melhores condições de trabalho e um maior apoio aos posseiros. Essas fazendas hoje são assentamentos ou acampamentos do MST.
Naquela época, os trabalhadores dessas fazendas foram os primeiros prisioneiros feitos pela polícia quando ela penetrou no perímetro do território controlado pela guerrilha. Os trabalhadores de hoje que lá estão continuam fazendo história, lutando pelos mesmos sonhos de 60 anos atrás.
Do IHU On-Line, via MST | 12 de julho de 2011
http://www.mst.org.br/node/12136
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